A Casa de Barro


Relato do Rabino Aliachau
Transcrito por O Mago

Em 1986, estive em Serra Pelada. Não como garimpeiro, nem como jornalista. Estive lá em missão espiritual, se assim posso dizer, movido por um chamado silencioso que não vinha da terra… mas do que estava enterrado nela.

Naquele tempo, Serra Pelada já fervilhava há anos. Era um formigueiro humano com sede de ouro. Homens de todas as partes do país mergulhavam na lama em troca de uma pepita que pudesse mudar suas vidas — ou acabar com elas. A região toda parecia pulsar com uma energia densa, antiga, como se algo primordial tivesse sido despertado com cada golpe de picareta.

Passei duas semanas por lá. Ouvi confissões, rezei por mortos que ainda não haviam morrido, e vi olhos que já estavam vazios, mesmo com os corpos em pé. Era um lugar onde o tempo parecia afundar junto com os sonhos.

Foi no décimo segundo dia que conheci Ester, cozinheira da pensão onde me hospedava. Mulher séria, poucas palavras. Mas numa noite, enquanto lavava as panelas, ela olhou pra mim e disse:

— Rabino… o senhor já foi pra detrás do mato ralo?

— O que é isso? — perguntei.

Ela limpou as mãos no avental e me encarou como se testasse minha alma.

— Um caminho. Depois da trilha de Carananduba. Dizem que lá… aparece ouro demais. Mas ninguém volta.

Na manhã seguinte, procurei por homens que já tivessem ouvido falar da tal trilha. Dois se recusaram a conversar. O terceiro, um velho de nome Alcides, me disse:

— Aquilo não é lugar de gente. O ouro lá parece chamar a pessoa. Um brilho pequenino que vai levando… levando… até que chega na casa.

— E o que tem na casa?

Ele coçou a barba com as mãos calejadas.

— Tem um homem… ou uma coisa parecida com homem. Alto demais. Pernas longas, finas, quase bambus. Ele não anda. Ele balança. Como se o vento soprasse só pra ele.

— Alguém já voltou?

Alcides olhou pro chão.

— Não. Nem um.

Na madrugada de sábado, contra todo bom senso, segui pela trilha de Carananduba. Levava comigo apenas uma lanterna, uma garrafa de água e meu talit, por proteção.

O mato era fechado, mas o caminho parecia… aberto. Como se algo limpasse a passagem pra mim. Foi quando vi — quase sem perceber — um brilho dourado entre as pedras. Uma pepita, pequena, polida como se tivesse sido deixada ali.

Ignorei. Continuei andando. Outra pepita. E outra.

O silêncio era absoluto, exceto pelo som do meu próprio sangue correndo.

Ao fim da trilha, a vegetação se abriu para uma clareira onde havia uma casa de barro. Torta, sem janelas. A porta entreaberta.

Ao lado da casa, um rio fino e escuro serpenteava a mata. E ali, sobre uma pedra lisa, ele estava.

Alto. Muito alto. Pernas longas demais para um ser humano. Os pés não tocavam o chão: apenas balançavam, de um lado para o outro, como se estivesse suspenso. A cabeça era encoberta por uma espécie de manto ou crina escura. Mas o que me paralisou foram os braços finos demais, que se estendiam até os joelhos.

Ele não me olhou. Não se moveu além do balanço constante. Mas eu soube que ele sabia que eu estava ali.

O ar ao meu redor ficou pesado. A luz da lanterna apagou. E por um instante, ouvi. Não com os ouvidos — mas com a alma:

“Prometa. Jure. Deixe algo.”

Senti as pernas cederem. Era como se o solo me empurrasse em direção à casa. Como se o ouro atrás de mim estivesse desaparecendo, voltando ao barro. Quis gritar. Rezar. Fugir. Mas só consegui ficar ali, ajoelhado, como diante de um altar profano.

Então, algo me tocou o ombro. Era Alcides.

— Rabino. Levante. Não olhe mais.

Ele me puxou. Me arrastou. E só depois que atravessamos o rio é que consegui respirar de novo.

— Como… como o senhor sabia onde eu estava?

Ele respondeu, seco:

— Todo homem que entra lá é chamado do mesmo jeito. Sempre num sábado.

Voltei a Belém três dias depois. Nunca mais pisei em Serra Pelada.

Mas até hoje, às vezes, quando fecho os olhos, escuto um farfalhar de folhas e o som ritmado de algo… balançando.

E uma voz que sussurra:
“Jure. Deixe algo. Volte.”

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