A Mulher da Capela
Por O Mago
O Cemitério da Soledade é antigo demais para não ter memória. Seus corredores de pedra, árvores tortas e esculturas cobertas de líquen guardam mais do que ossos. Guardam presenças. Silêncios. E histórias que insistem em continuar mesmo depois da morte.
A maioria das pessoas só passa pelos muros altos, pela fachada imponente da entrada e segue a vida. Mas eu sou diferente. Eu escuto quando algo chama. E naquela noite… chamou.
Não fui sozinho. Um amigo historiador, André, preparava um documentário sobre religiosidade popular e me chamou pra acompanhá-lo em uma visita ao Soledade. Era fim de tarde. O portão ainda estava aberto. Recebemos autorização para filmar, com a condição de sairmos antes do anoitecer.
A capela neoclássica no centro da necrópole nos chamou a atenção logo de cara — imponente, silenciosa, com vitrais manchados pelo tempo. A luz do entardecer fazia desenhos esquisitos pelas frestas.

Entramos. Lá dentro, o ar era mais frio. Denso. As colunas pareciam ossos, e os bancos de madeira, cobertos de pó, faziam ranger cada passo.
Foi ali que ouvimos pela primeira vez.
Um sussurro.
Fraco, mas claro.
— Não me abandona…
Paramos. André me olhou.
— Tu escutou isso?
— Escutei. — respondi, seco.
Procuramos a origem da voz. A capela estava vazia. Mas no altar havia uma vela recém-queimada e uma imagem da Virgem com expressão tão triste que parecia chorar.
Saímos antes do portão fechar.
Mas alguma coisa tinha ficado com a gente.
Na semana seguinte, voltamos.
Dessa vez à noite. Sem autorização.
Pulamos o muro lateral e caminhamos no escuro. A cidade ainda respirava do lado de fora, mas ali dentro… o tempo era outro. O silêncio era pesado, e até o vento parecia segurar a respiração.
Foi então que a vimos.
A porta da capela estava entreaberta, e havia alguém ajoelhado lá dentro.
Uma mulher.
Vestida de preto. Véu sobre o rosto.
Rezava em sussurros, com as mãos apertadas no peito. Sua voz era antiga, carregada de uma dor que atravessava o tempo.
Ficamos imóveis. Algo naquela cena congelava o corpo.
Mas quando o véu balançou — e não havia vento —, soubemos que havia algo profundamente errado.
André, mais corajoso ou mais tolo, deu um passo à frente. O assoalho rangeu.
A mulher virou o rosto.
Lentamente.
Mas ela não tinha rosto.
Apenas sombra.
Corremos.
Sem olhar pra trás.
Sem pensar.
Pulamos o muro como animais em fuga. E naquela noite, o silêncio da capela nos perseguiu até em casa.
No dia seguinte, voltamos ao cemitério — com permissão.
O zelador nos recebeu com cara fechada.
— Vocês entraram aqui ontem, não foi?
— A gente viu uma mulher… na capela — disse André, tentando manter a voz firme.
O velho apenas assentiu.
— Desde 1962, ninguém entra ali à noite. Depois do sumiço da professora.
— Que professora?
— Uma mulher que dava aula na escola aqui perto. Dizem que ela rezava todas as noites por um filho que morreu na epidemia. Um dia, entrou… e nunca mais saiu. Mas às vezes… ela volta.
André, cético de carteirinha, ficou abalado. Começou a ter pesadelos.
Dizia que ela chamava por ele.
Dizia que a mulher da capela o queria de volta.
Pouco tempo depois, sofreu um acidente estranho.
Sobreviveu, mas deixou Belém.
Até hoje, de tempos em tempos, recebo uma mensagem dele.
Sempre a mesma frase, em letras maiúsculas:
“ELA ESTÁ NA CAPELA.”