Belém não dorme — ela cochila com um olho aberto e o outro mergulhado em neblina. Às vezes, essa neblina se arrasta por ruas que não estão mais nos mapas. E às vezes… você entra num ônibus que não desvia estar ali.
Essa história chegou até mim como uma sugestão. Não sei se foi sonho, devaneio ou delírio. Mas ela tem cheiro de verdade. Daquela verdade que arrepia a nuca.
O nome dele é Roberto. Mora na Terra Firme, trabalha no centro. Uma rotina miúda, sem grandes desvios. Mas numa noite qualquer — terça-feira, tempo abafado, ar cheirando a ferro e chuva — ele perdeu o ônibus. Estava na Praça Dom Pedro II, quando um coletivo estranho dobrou a esquina como quem invadiu um tempo errado.
Era um ônibus antigo, vinho escuro, com pintura fosca e uma placa de madeira onde devia haver o letreiro eletrônico. Escrito à mão, em letras talhadas: 11:13 – Sete Além .
O motor roncava como se cuspisse areia. O cobrador era um sujeito magro, de rosto liso demais, olhos fundos, e um sorriso que parecia ensaiado. Acenou para Roberto com um gesto lento, convidativo — como se já soubesse que ele entraria.
Dentro, o ar era denso, abafado. Havia três passageiros. Uma senhora com vestido de luto antigo, luvas e véu. Um homem de chapéu lendo um jornal de páginas ocres, como se tirado de uma gaveta esquecida. E uma menina — os olhos dela não piscavam. Quando enviado, foi como se o tempo dobrasse em silêncio.
Ninguém falou com ele. Ninguém cobrou passagem.
Lá fora, Belém parecia… errada. As ruas tinham nomes familiares, mas não pertenciam a este século. Postes tortos lançavam luz morta sobre calçadas rachadas. Fachadas de prédios exibiam letreiros com palavras escritas em ortografia antiga. E não havia som — nem de gente, nem de motor, nem de vento. Apenas o zumbido contínuo do ônibus e um pulsar surdo, como se a cidade respirasse embaixo da pele.
— Primeira vez em Sete Além? — Disse a senhora do vestido.
A voz dela era de veludo úmido, frio e cheio de poeira.
Roberto tentou rir, mas não conseguiu. Apenas assentiu com um nó na garganta.
— Esse entrou errado — ela disse, encarando o cobrador.
O ônibus estancou de súbito. As portas se abriram para uma rua escura, parecida com a Avenida Nazaré. Mas não era. Era uma Nazaré mais funda, mais sombria. As árvores não tinham folhas. O céu tinha um tom púrpura viscoso, como vinho talhado.
Ele desceu. E o ônibus… sumiu. Não foi embora — sumiu .
A rua piscou, como em filme queimado. De repente, estava de volta. Os carros, os filhos, as luzes — tudo onde deve estar. Um homem vendia tacacá na esquina. Um casal discutiu ao pé da Basílica. E o relógio da Catedral marcava 11:13 .
Desde então, Roberto não anda mais tarde. E nunca mais olhou nos olhos de nenhum cobrador. Especialmente se estiver sorrindo antes de ele pedir a passagem.